terça-feira, 24 de julho de 2012

Berlim

Te encontro bem antes que o sol aponte
No horizonte da infinita planície
Esperando que Ele esteja presente
E que nunca, nunca mais silencie

Aquele muro que dividiu o mundo
Acelera o fluxo de tudo em mim
Desagrega o presente do futuro
Não explica se é começo ou fim

Me afogo em mil litros de sangue espesso
Da tua gente que aqui nasceu e existiu
No gueto mãos guiam o recomeço
De vida pulsante que não se extinguiu

Sua filarmônica ressoa um compasso
Música: antítese do estopim
Hoje seu muro que está em pedaços
É marca concreta dentro de mim




segunda-feira, 18 de junho de 2012

Os Animais do Bosque dos Vinténs

    Nesse sábado saímos de um animado churrasco brazuca às 2 horas da manhã e pela segunda vez na vida nos deparamos com as, mundialmente conhecidas, restrições do transporte público Suíço... Explico: em Zürich o transporte regular pára de passar à meia noite e meia e a partir desse horário as opções de locomoção se restringem a ônibus noturno (que passa a cada meia hora), taxi (que custa mais ou menos os dois olhos da sua cara) ou seus próprios pés.
    Auxiliados pela ansiedade para chegar logo em casa, nossa peculiar pão-durice,  muita loucura na cabeça e alguns mililitros de sangue no álcool, decidimos encarar os 2 quilômetros do caminho e começamos a subir as intermináveis escadas que cortam a cidade.
    Talvez em outros tempos o avançado da hora, a escuridão e o vazio ecoante das ruas pudessem nos causar medo e acelerassem os nossos passos. Mas nesse sábado nos abismamos mais uma vez com  essa cidade. A convidamos para um passeio e sentimos o seu cheiro de flores sufocadas pelo ar quente da noite. Desfrutamos do seu silêncio só cortado pelo barulho dos grilos e pelas nossas respirações ofegantes.
    No meio da contemplação fomos interceptados por um bicho. Tinha andar parecido com o de um gato e porte igual a de um cachorro. Saltou repentinamente na nossa frente e, sem se dar muito conta da nossa presença, atravessou a avenida desértica usando, obviamente, a faixa de pedestres. Perplexos, seguimos o vulto até o parque do Hospital e em meio às luzes difusas da noite pudemos reconhecer uma raposa!
    Percebendo passos estranhos atrás de si correu para um pequeno morro gramado. Parou no cume, alguns metros a frente de uma lâmpada de jardim, e se voltou para nós surpresa. Encarou-nos por algum tempo com seus olhos vidrados, orelhas de pé e rabo felpudo reluzindo a luminosidade artificial. Em seguida escafedeu-se no meio das árvores daquele oásis urbano nos deixando extasiados...
    Naqueles poucos instantes cara a cara sentimos o respeito mútuo pela similaridade da situação: o bicho selvagem explorando as estranhezas do coração da cidade e nós, seres humanos do hemisfério sul, tão fora do nosso habitat natural perplexos com as surpresas dessa nova terra.

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Para quem ficou saudoso vai a abertura do antigo desenho da Cultura: http://www.youtube.com/watch?v=6jln3u_L9Hc



sexta-feira, 15 de junho de 2012

Visita Indesejada

    Isso já me aconteceu outras vezes. É só o tempo abrir (e as janelas também, por consequência) que o som repugnante cutuca lá no fundo os meus instintos mais selvagens e traz a tona o que há de mais violento em mim. Em dias de menor fome, menor também é a fúria. Hoje, para sua infelicidade, eu estava em jejum...
    Picava legumes para o almoço no momento em que notei sua presença. Ainda de costas, calculei sua distância, respirei fundo para acalmar o espírito e me preparei para o primeiro confronto do dia. Com a faca em punho virei bruscamente procurando o inimigo. Vi em seus enormes olhos verdes o reflexo do meu espanto e instintivamente me esquivei para a direita. Senti seus movimentos rápidos agitando o ar a minha volta e o zunido incessante me provocava dizendo: agora é você ou eu!
     Me recompus da maneira que pude e avancei para o ataque ainda sentindo a aceleração cardíaca típica das mudanças súbitas de humor. Vupt. Uma facada no ar! O inimigo saiu ileso e desafiou o meu equilíbrio ao passar por debaixo das minhas pernas. Tentou se aproximar da panela descoberta e, num relâmpago, pensei que esse poderia ser o momento ideal para trocar minha arma por uma ainda mais branca. A faca quicou no chão e estiquei o braço esquerdo para alcançar o pano de prato. Úmido. Muito mais mortal.
    Seu voar incerto enganou minhas previsões de movimento fazendo com que o pano canhoto passasse a muitos palmos de distância do alvo. Mesmo assim a corrente de ar gerada arremessou-a contra a parede deixando-a tonta. Os tics e tocs do seu corpo débil batendo em todos os móveis, ao invés da esperada piedade pelos  moribundos, me despertaram ainda mais ira. Passei a esbofetear nervosamente os armários, a geladeira e a pia numa tentativa desesperada de, por engano, atingir o ser que atentava contra a minha paz doméstica.
    Parei quando minha parca preparação física impediu mais golpes. Foquei os olhos e afinei os ouvidos tentando descobrir para onde todos aqueles aleatórios fluxos de ar tinham levado a minha rival. E lá estava ela, próxima do rodapé, sorrindo da cena deplorável. Ao perceber que eu tinha encontrado o seu paradeiro, engoliu a gargalhada, juntou suas patinhas dissimuladas pedindo forças ao Nosso Senhor e disparou na minha direção com a intenção clara de entrar no meu ouvido e me azucrinar para o resto da vida.  Furiosa, estiquei o pano com as duas mãos e num movimento-estilingue acertei na mosca!




quinta-feira, 14 de junho de 2012

A-gente

A gente separa mas não divide
A gente não trata com preconceito
O espaço é pouco e não decide
Se é distante ou tem laço estreito

Agente olha o que está guardado
Agente aceita qualquer proposta
Agente oculta o indeterminado
E transforma a matéria decomposta

A gente em volta nos diz respeito
Com mais efeito do que se aposta
A gente conjuga este sujeito
Como se única fosse a resposta

Nosso propósito coincide
Mas o linguajar é imperfeito
A gente discorda mas não agride
Mesmo que disto não tire proveito

A gente é brasileiro e não se discute
Apesar do nós, que a escola defende
Família, amigos, amores: A gente
Como espanhol não entende


terça-feira, 17 de abril de 2012

Pianista Aspira

Começou o seu treino a exatas 20 horas e 12 minutos do horário de Roma e aguçou minha imaginação sobre o que poderia fazer com que houvesse um aprendiz de pianista no prédio do hotelzinho de Florence. E tão dedicado a aprender as escalas!
Imaginei que pudesse ser o insistente aluno da Tia Celina cujas primeiras notas ouvi, da casa vizinha muitos anos atrás, disfarçando minha cara de embaraço por ter entendido que quem tocava era ela... Ou um jovem sonhador desejando ter, num futuro próximo, uma cantora de cabaré com pernas esguias sentada sobre o seu corpulento instrumento... Ou um desses músicos que estão espalhados pela cidade com os seus chapéus estrategicamente caídos e dando demonstrações de talento a ser descoberto... ou lapidado. Neste caso a localização é perfeita porque precisamos mesmo de um lapidador da envergadura de Michelangelo para termos alguma esperança!
Minha avó jurava que era uma mulher... não sei se pela leveza dos dedos ou pelas sucessivas paradas, certamente, para arrumar o cabelo. Agora também estou convicta que seja mulher porque conseguiu embalar o sono da minha avó da mesma maneira como as mães sem jeito, com um cantarolar destreinado mas cheio de boa vontade, fazem dormir os seus bebês.
Valeu, Aspira, me devolveu a insônia e, de quebra, me tirou da hibernação!