sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O milagre do pão

    Após quatro semanas intensas no úmido verão brasileiro me encontro novamente no lar alpino encarando a tarefa de me readaptar ao ar seco e à solitária rotina suíça. Lá fora o inverno de -10ºC me saúda com lindo sol reluzente e eu retribuo a generosidade erguendo minha xícara de chá escaldante num movimento de brinde.
       O fuso trocado mexe muito com a gente e leva o meu café da manhã para o horário dos vagabundos: às duas e meia da tarde. Meus pensamentos ignoram o almoço e logo penso no que teremos para comer a noite. Pelos meus cálculos um café da tarde é perfeito para o horário biológico do jantar e, como prato principal, nada melhor do que um pão caseiro.
     Aos poucos a casa foi dominada pelo cheiro do fermento e pela temperatura aconchegante do forno. Logo, todo o ambiente estava tomado pela atmosfera padarística e eu, orgulhosa, pensei até em mudar meu nome para Dona Manuela!
    Trouxe o recém-nascido para a mesa e, embasbacada, pude ver a minha avó se aproximando para roubar o primeiro pedaço do pão dourado de grãos, ignorando suas sérias restrições às sementinhas. Meu pai veio logo atrás dela, se sentou no banco e, no meio da sua conversa desenvolta, beliscou uma fatia generosa e a cobriu com um, igualmente generoso, naco de manteiga. Esticou o braço para repetir a dose, mas foi impedido pelo meu olhar severo. Minha mãe ruidosa, sem perceber a bronca muda que acabara de presenciar, se serviu de geleia e de um copo bem cheio de leite quente. Meu irmão observava a cena com um risinho quase escorrendo dos lábios junto com o fio de café recém-feito que escapuliu do copo americano e foi parar-lhe no queixo.
   A duplinha de sobrinhos irrompeu como furacão na cozinha reivindicando a fatia de presunto que tornaria o lanche igual ao do Chaves. Meu sogro apareceu com os insumos necessários para sua super-especialidade de café da manhã. Minha sogra, feliz de ver tanta gente reunida, se esqueceu de comer e ficou olhando fixamente a minha nuca enquanto eu contava para minhas cunhadas os malabarismos que tive que fazer para que os grãos do pão não sufocassem as bolinhas de ar.
     Uma infinidade de rostos surgiu pelo corredor e, um a um, foram arranjando um lugar à mesa, um pedaço de pão com seu acompanhamento preferido e uma brecha para entrar na conversa. Cheguem mais tios e tias! Queridos amigos, podem se sentar! Entrem que a casa está empoeiradinha, mas é nossa...


Pão Fofinho de Grãos


Ingredientes

-Aproximadamente 500 g de  farinha de trigo comum misturada com integral
-Aproximadamente 400 ml de água morna
-2 colheres de semente de papoula
-2 colheres de linhaça
-2 colheres de gergelim
-2 colheres de semente de girassol
-2 colheres de  lascas de amêndoas
-1 colher de açúcar
-40 g de fermento biológico
-Sal, alecrim e pimenta do reino a gosto (moer tudo junto em um pilão)
-2 colheres de azeite de oliva


Modo de Fazer

1.Desmanche o fermento no açúcar , 1 colher de farinha e em 1/3 da água morna.
2.Em uma tigela acrescente  os ingredientes secos ao fermento + o restante da água e mexa com um garfo até dar uma massa consistente, porém grudenta.
3.Passe para  a bancada e termine de unificar a massa sovando-a com a mão e colocando somente o necessário de farinha adicional (ATENÇÃO: não enfie muito a mão na massa e use somente o suficiente de farinha para que a massa  fique elástica e não grudenta. Farinha de mais deixa o pão duro!)
4.Retire uma pequena bolinha da massa e coloque em um copo cheio de água. Coloque a massa restante , em formato de bola, em um recipiente coberto para que cresça.
5.Quando a bolinha  no copo de água flutuar significa que a massa reservada já está crescida e pode ser novamente trabalhada..
6.Corte delicadamente a massa em duas e deixe-as no formato desejado para assar. (Nessa etapa é importante não mexer muito na massa para ela não perder as bolhas de ar internas.)

7. Pincele azeite de oliva sobre toda a superfície do pão para que ele doure ao assar.
8.Coloque os pães no forno pré-aquecido à 180º C, com uma tigela de água na prateleira de baixo. Deixe assar por aproximadamente 40 minutos.








terça-feira, 24 de julho de 2012

Berlim

Te encontro bem antes que o sol aponte
No horizonte da infinita planície
Esperando que Ele esteja presente
E que nunca, nunca mais silencie

Aquele muro que dividiu o mundo
Acelera o fluxo de tudo em mim
Desagrega o presente do futuro
Não explica se é começo ou fim

Me afogo em mil litros de sangue espesso
Da tua gente que aqui nasceu e existiu
No gueto mãos guiam o recomeço
De vida pulsante que não se extinguiu

Sua filarmônica ressoa um compasso
Música: antítese do estopim
Hoje seu muro que está em pedaços
É marca concreta dentro de mim




segunda-feira, 18 de junho de 2012

Os Animais do Bosque dos Vinténs

    Nesse sábado saímos de um animado churrasco brazuca às 2 horas da manhã e pela segunda vez na vida nos deparamos com as, mundialmente conhecidas, restrições do transporte público Suíço... Explico: em Zürich o transporte regular pára de passar à meia noite e meia e a partir desse horário as opções de locomoção se restringem a ônibus noturno (que passa a cada meia hora), taxi (que custa mais ou menos os dois olhos da sua cara) ou seus próprios pés.
    Auxiliados pela ansiedade para chegar logo em casa, nossa peculiar pão-durice,  muita loucura na cabeça e alguns mililitros de sangue no álcool, decidimos encarar os 2 quilômetros do caminho e começamos a subir as intermináveis escadas que cortam a cidade.
    Talvez em outros tempos o avançado da hora, a escuridão e o vazio ecoante das ruas pudessem nos causar medo e acelerassem os nossos passos. Mas nesse sábado nos abismamos mais uma vez com  essa cidade. A convidamos para um passeio e sentimos o seu cheiro de flores sufocadas pelo ar quente da noite. Desfrutamos do seu silêncio só cortado pelo barulho dos grilos e pelas nossas respirações ofegantes.
    No meio da contemplação fomos interceptados por um bicho. Tinha andar parecido com o de um gato e porte igual a de um cachorro. Saltou repentinamente na nossa frente e, sem se dar muito conta da nossa presença, atravessou a avenida desértica usando, obviamente, a faixa de pedestres. Perplexos, seguimos o vulto até o parque do Hospital e em meio às luzes difusas da noite pudemos reconhecer uma raposa!
    Percebendo passos estranhos atrás de si correu para um pequeno morro gramado. Parou no cume, alguns metros a frente de uma lâmpada de jardim, e se voltou para nós surpresa. Encarou-nos por algum tempo com seus olhos vidrados, orelhas de pé e rabo felpudo reluzindo a luminosidade artificial. Em seguida escafedeu-se no meio das árvores daquele oásis urbano nos deixando extasiados...
    Naqueles poucos instantes cara a cara sentimos o respeito mútuo pela similaridade da situação: o bicho selvagem explorando as estranhezas do coração da cidade e nós, seres humanos do hemisfério sul, tão fora do nosso habitat natural perplexos com as surpresas dessa nova terra.

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Para quem ficou saudoso vai a abertura do antigo desenho da Cultura: http://www.youtube.com/watch?v=6jln3u_L9Hc



sexta-feira, 15 de junho de 2012

Visita Indesejada

    Isso já me aconteceu outras vezes. É só o tempo abrir (e as janelas também, por consequência) que o som repugnante cutuca lá no fundo os meus instintos mais selvagens e traz a tona o que há de mais violento em mim. Em dias de menor fome, menor também é a fúria. Hoje, para sua infelicidade, eu estava em jejum...
    Picava legumes para o almoço no momento em que notei sua presença. Ainda de costas, calculei sua distância, respirei fundo para acalmar o espírito e me preparei para o primeiro confronto do dia. Com a faca em punho virei bruscamente procurando o inimigo. Vi em seus enormes olhos verdes o reflexo do meu espanto e instintivamente me esquivei para a direita. Senti seus movimentos rápidos agitando o ar a minha volta e o zunido incessante me provocava dizendo: agora é você ou eu!
     Me recompus da maneira que pude e avancei para o ataque ainda sentindo a aceleração cardíaca típica das mudanças súbitas de humor. Vupt. Uma facada no ar! O inimigo saiu ileso e desafiou o meu equilíbrio ao passar por debaixo das minhas pernas. Tentou se aproximar da panela descoberta e, num relâmpago, pensei que esse poderia ser o momento ideal para trocar minha arma por uma ainda mais branca. A faca quicou no chão e estiquei o braço esquerdo para alcançar o pano de prato. Úmido. Muito mais mortal.
    Seu voar incerto enganou minhas previsões de movimento fazendo com que o pano canhoto passasse a muitos palmos de distância do alvo. Mesmo assim a corrente de ar gerada arremessou-a contra a parede deixando-a tonta. Os tics e tocs do seu corpo débil batendo em todos os móveis, ao invés da esperada piedade pelos  moribundos, me despertaram ainda mais ira. Passei a esbofetear nervosamente os armários, a geladeira e a pia numa tentativa desesperada de, por engano, atingir o ser que atentava contra a minha paz doméstica.
    Parei quando minha parca preparação física impediu mais golpes. Foquei os olhos e afinei os ouvidos tentando descobrir para onde todos aqueles aleatórios fluxos de ar tinham levado a minha rival. E lá estava ela, próxima do rodapé, sorrindo da cena deplorável. Ao perceber que eu tinha encontrado o seu paradeiro, engoliu a gargalhada, juntou suas patinhas dissimuladas pedindo forças ao Nosso Senhor e disparou na minha direção com a intenção clara de entrar no meu ouvido e me azucrinar para o resto da vida.  Furiosa, estiquei o pano com as duas mãos e num movimento-estilingue acertei na mosca!




quinta-feira, 14 de junho de 2012

A-gente

A gente separa mas não divide
A gente não trata com preconceito
O espaço é pouco e não decide
Se é distante ou tem laço estreito

Agente olha o que está guardado
Agente aceita qualquer proposta
Agente oculta o indeterminado
E transforma a matéria decomposta

A gente em volta nos diz respeito
Com mais efeito do que se aposta
A gente conjuga este sujeito
Como se única fosse a resposta

Nosso propósito coincide
Mas o linguajar é imperfeito
A gente discorda mas não agride
Mesmo que disto não tire proveito

A gente é brasileiro e não se discute
Apesar do nós, que a escola defende
Família, amigos, amores: A gente
Como espanhol não entende


terça-feira, 17 de abril de 2012

Pianista Aspira

Começou o seu treino a exatas 20 horas e 12 minutos do horário de Roma e aguçou minha imaginação sobre o que poderia fazer com que houvesse um aprendiz de pianista no prédio do hotelzinho de Florence. E tão dedicado a aprender as escalas!
Imaginei que pudesse ser o insistente aluno da Tia Celina cujas primeiras notas ouvi, da casa vizinha muitos anos atrás, disfarçando minha cara de embaraço por ter entendido que quem tocava era ela... Ou um jovem sonhador desejando ter, num futuro próximo, uma cantora de cabaré com pernas esguias sentada sobre o seu corpulento instrumento... Ou um desses músicos que estão espalhados pela cidade com os seus chapéus estrategicamente caídos e dando demonstrações de talento a ser descoberto... ou lapidado. Neste caso a localização é perfeita porque precisamos mesmo de um lapidador da envergadura de Michelangelo para termos alguma esperança!
Minha avó jurava que era uma mulher... não sei se pela leveza dos dedos ou pelas sucessivas paradas, certamente, para arrumar o cabelo. Agora também estou convicta que seja mulher porque conseguiu embalar o sono da minha avó da mesma maneira como as mães sem jeito, com um cantarolar destreinado mas cheio de boa vontade, fazem dormir os seus bebês.
Valeu, Aspira, me devolveu a insônia e, de quebra, me tirou da hibernação!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Der Tisch

   Não sei precisar o ano em que nasci, nem o mês. Mas sei que era inverno e que o tempo estava seco. Me deram o banho do nascimento e logo já não havia em mim sinal de umidade. Nem mesmo da lágrima que esperei em vão cair de seus olhos.
   Isolada e tendo apenas um punhado de atenção de tempos em tempos, comecei desde cedo a entender minha condição solitária e, para não enlouquecer no silêncio, me apeguei aos pensamentos sobre a minha origem e sobre o meu futuro. Lembrei-me das feições daqueles outros que estiveram comigo nos primeiros tempos, cujos destinos e nomes eu nunca soube. E comecei a supor que apesar de nossas imensas diferenças teríamos algo em comum não só na origem como também na matéria. Algo como um parentesco. Algo que um dia pudesse novamente nos unir... No meio desses meus primeiros devaneios, fui obrigada a mudar de casa.
    Nesse novo lar eu já não era isolada e aos poucos fui esquecendo os meus iguais (não saber seus nomes facilitou este processo) e pouco a pouco comecei a me sentir parte daquela nova gente que agora me rodeava. Me bateram algumas vezes, mas não guardei cicatrizes internas de nenhum dos episódios. Suportei e fui suportada. As vezes eu era o centro da conversa, as vezes ficava só ouvindo de canto e em dias de jogo só precisava cuidar das cervejas e dos beliscos. 
   Foi um tempo longo e feliz. Mas nunca me enganei que fosse para sempre pois, frequentemente, ouvia por detrás da porta os planos para o futuro. E eles não me incluíam... 
    Fui deixada para trás e mais uma vez me recolhi no silêncio e nos meus pensamentos. Muito embora eu tivesse bagagem, duvidava que as marcas do tempo que também carregava pudessem ser atraentes e anunciar minha utilidade a alguém. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali naquele abrigo esperando alguma coisa acontecer e rezando no escuro para que minha vida passasse depressa. 
     Mas Ele me guardou uma grande surpresa. 
    Sem saber se era dia ou noite acordei num sobre-salto sentindo o calor de olhos arregalados sobre mim. O susto se transformou em conforto quando me dei conta que o esbugalhado diâmetro da órbita indicava a felicidade pelo fim da busca. Me faltou chão quando o sorriso se abriu nos lábios daquela moça e ouvi o seu sussurro "Acho que tenho uma posição perfeita para você!"
    Ganhei um novo lar e pela primeira vez pude ter o prazer de sentir cães passando por entre as minhas pernas. Nos almoços de Domingo ficava rodeada de crianças com quem passava as tardes jogando longas partidas de xadrez. Nesses quase 20 anos de convivência fui cuidada com os melhores cosméticos naturais e desenvolvi o excêntrico gosto pela roupa de crochê o que, paradoxalmente, me trouxe de volta a juventude.
   Meses atrás ouvindo o que tramavam bem ali na minha cara receei novamente o abandono. Mas dessa vez, no dia D, houve grandes diferenças: vieram me buscar e os olhos ora esbugalhados estavam estreitos e úmidos. Não demorou para eu perceber que já não era mais um traste ou um trambolho, mas um presente de amor. Uma herança.
   Embarquei para o meu novo destino sem saber qual era e ignorando a existência de todos os outros imigrantes que estavam na mesma viagem. Por um acaso, fui a primeira a sair da caixa e dar um olá para a nova geração de donos e, por conta disso, pude saudar um a um os meus novos companheiros a medida que foram sendo desembrulhados.
   Muita coisa mudou. Sinto falta dos cães. Ganhei um novo nome. Nessas novas terras não sou neutra, mas masculina, embora as velhas curvas arredondadas não neguem o meu verdadeiro gênero. 
   Pretendo viver para sempre.



PS: Obrigada, Mãe! Foi um lindo presente.