terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Der Tisch

   Não sei precisar o ano em que nasci, nem o mês. Mas sei que era inverno e que o tempo estava seco. Me deram o banho do nascimento e logo já não havia em mim sinal de umidade. Nem mesmo da lágrima que esperei em vão cair de seus olhos.
   Isolada e tendo apenas um punhado de atenção de tempos em tempos, comecei desde cedo a entender minha condição solitária e, para não enlouquecer no silêncio, me apeguei aos pensamentos sobre a minha origem e sobre o meu futuro. Lembrei-me das feições daqueles outros que estiveram comigo nos primeiros tempos, cujos destinos e nomes eu nunca soube. E comecei a supor que apesar de nossas imensas diferenças teríamos algo em comum não só na origem como também na matéria. Algo como um parentesco. Algo que um dia pudesse novamente nos unir... No meio desses meus primeiros devaneios, fui obrigada a mudar de casa.
    Nesse novo lar eu já não era isolada e aos poucos fui esquecendo os meus iguais (não saber seus nomes facilitou este processo) e pouco a pouco comecei a me sentir parte daquela nova gente que agora me rodeava. Me bateram algumas vezes, mas não guardei cicatrizes internas de nenhum dos episódios. Suportei e fui suportada. As vezes eu era o centro da conversa, as vezes ficava só ouvindo de canto e em dias de jogo só precisava cuidar das cervejas e dos beliscos. 
   Foi um tempo longo e feliz. Mas nunca me enganei que fosse para sempre pois, frequentemente, ouvia por detrás da porta os planos para o futuro. E eles não me incluíam... 
    Fui deixada para trás e mais uma vez me recolhi no silêncio e nos meus pensamentos. Muito embora eu tivesse bagagem, duvidava que as marcas do tempo que também carregava pudessem ser atraentes e anunciar minha utilidade a alguém. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali naquele abrigo esperando alguma coisa acontecer e rezando no escuro para que minha vida passasse depressa. 
     Mas Ele me guardou uma grande surpresa. 
    Sem saber se era dia ou noite acordei num sobre-salto sentindo o calor de olhos arregalados sobre mim. O susto se transformou em conforto quando me dei conta que o esbugalhado diâmetro da órbita indicava a felicidade pelo fim da busca. Me faltou chão quando o sorriso se abriu nos lábios daquela moça e ouvi o seu sussurro "Acho que tenho uma posição perfeita para você!"
    Ganhei um novo lar e pela primeira vez pude ter o prazer de sentir cães passando por entre as minhas pernas. Nos almoços de Domingo ficava rodeada de crianças com quem passava as tardes jogando longas partidas de xadrez. Nesses quase 20 anos de convivência fui cuidada com os melhores cosméticos naturais e desenvolvi o excêntrico gosto pela roupa de crochê o que, paradoxalmente, me trouxe de volta a juventude.
   Meses atrás ouvindo o que tramavam bem ali na minha cara receei novamente o abandono. Mas dessa vez, no dia D, houve grandes diferenças: vieram me buscar e os olhos ora esbugalhados estavam estreitos e úmidos. Não demorou para eu perceber que já não era mais um traste ou um trambolho, mas um presente de amor. Uma herança.
   Embarquei para o meu novo destino sem saber qual era e ignorando a existência de todos os outros imigrantes que estavam na mesma viagem. Por um acaso, fui a primeira a sair da caixa e dar um olá para a nova geração de donos e, por conta disso, pude saudar um a um os meus novos companheiros a medida que foram sendo desembrulhados.
   Muita coisa mudou. Sinto falta dos cães. Ganhei um novo nome. Nessas novas terras não sou neutra, mas masculina, embora as velhas curvas arredondadas não neguem o meu verdadeiro gênero. 
   Pretendo viver para sempre.



PS: Obrigada, Mãe! Foi um lindo presente.

Um comentário:

  1. Meu Deus! Quase chorei pela mesinha de centro!

    Seu "lar" está cada vez mais "lar" e você cada vez mais me lembrando Cora Coralina...(é que ela é minha preferida nas leituras...)

    Beijos,
    Carol.

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